sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Porque as vezes não consigo escrever poesia

Poesias vem e vão
Sem mais nem menos
Como dias bons
Como alegres momentos
Não duram para todo o sempre
Mas ficam de recordação
Num dia sou poesia
Noutro não
Hoje fiz um poema
Amanhã quem sabe
Ele vira canção
Voz e violão
Enquanto isso
Vamos em frente
Com poesia ou não
Em dias de inverno ou verão
Pois os melhores poemas
Escrevem-se com os pés
E declamam-se com o coração
Nunca se sabe
Que belas liras virão
Quão belos os versos serão
No próximo dia bom

Felicidade (II)

Era feliz
Não porque tivesse muito
Porque nada faltasse
Mas porque bastava-lhe
O pouco que tinha
O pouco é suficiente
Quando é tudo de que se necessita
Era feliz
Não porque não tivesse medo
Culpas e angústias
Mas porque sabia
Que sua fé, sua força
Sua vontade de ser uma melhor pessoa
Era maior que todas as pedras
Juntas
A vida é sofrida
Caminho feito de curvas
Mas não é uma via-cruzes
Nem viemos cá pagar penitência
Era feliz
Porque mesmo a vida machucando
Tinha certeza que uma vida que não machuca
Que não se arrisca
Não vale a pena ser vivida
Por isso tudo
Por ser grato
Com a cota que recebera
E despojado com a parte que ia deixando
Era feliz sem ser
Era feliz estando
E feliz ia passando
Até o dia em que essa palavra
Não fará mais sentido
Nesse dia de serenidade
Felicidade será quase uma matéria
Qualidade do mundo
Natureza pulsante
E não um consolo
Sonho distante
Tristemente
Humano

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Felicidade

Tantas vezes
Eu já quis
Desistir
De ser feliz
Levar a vida
Sem nenhuma expectativa
Achando que só aceitando
A amargura
Poderia eu seguir
Senão em paz
Que seja não em guerra

Mas nunca consegui
Essa necessidade
De ser feliz
Me persegue
Como uma flor frágil
Que teima renascer
Mais e mais exuberante
No solo pobre e infértil
Do deserto

Ela há de me perseguir
Até o fim dos dias
Até que nada reste
Senão a semente
Esperando outra vida
Outra oportunidade
Pra teimar novamente
Porque ser feliz
É pura teimosia nossa
Relicário
Chama de breviário caseiro
Que nem a morte apaga

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Juventude

Tenho um nó na garganta
O gosto amargo
De quem quis beber a vida
Pura, num só trago
E queimou a boca
E de gole em gole
Ficou bêbado
E a desperdiçou toda
Numa noite
Alegre de porre
Da qual mal me lembro
Acho que toda juventude
É assim mesmo
Um exuberante desperdício
Que se aproveita ao máximo
Justamente desperdiçando-a
Até a última gota
A juventude urge, é pressurosa
Tem sede, e é pródiga
Vive o hoje, o agora
O amanhã lhe parece tão distante, abstrato
O corpo é forte
O coração impetuoso
As pernas infatigáveis
A juventude nunca satisfaz-se
Com coisa pouca
Porque há sempre mais
Por fazer
O mundo é a sua concha
E nem nos damos conta
Que ela um dia acaba
E cá estamos nós
Assombrados por erros
Sentados sobre um amontoado de lembranças amareladas
Do que poderia ter sido
E não foi
Foi-se
Para sempre
E só nos resta perguntar
Estupefatos
Como diabos vim parar aqui?
O engraçado da vida
É que se a vive sem saber vivê-la
E quando se aprende
O tempo da vida já passou
A juventude
Que era primavera
Cheia de promessas
Esfriou, anuviou e fez-se inverno
Então somos velhos
Atulhados em culpas
Ranzinzas e rancorosos
Talvez arrependidos
Talvez satisfeitos
Mas quase sempre muito machucados
Cultivando mágoas
Como fantasmas saudosos do passado
Certos de que é isso mesmo
O fim das ilusões
Que significa tornar-se adulto
Abjurar de sonhos vãos
O fato é que ninguém irá lhe ensinar
Como viver uma boa vida
Como crescer e evoluir
Com sabedoria
É saber que não se encontra
Em livros ou nos ditos da avó
Em pitos de mãe
Ou conselhos de amigos
É preciso descobrir por si mesmo
Não há outro modo
Senão aprender do pior jeito
Com os próprios erros
Haverá tempo ainda?
Sempre há
O que falta
É coragem
A coragem da juventude

Ciência e fé

Não faz mal acreditar em magia
Quero dizer
Acreditar que o mundo
É um lugar mágico, encantado
E que o universo conspira
Lhe diz o que fazer
Se você souber ouvir
E prestar bastante atenção
Pequenas coincidências
Não são meros acasos
Quando se trata dos caminhos da vida
Dos mistérios do coração
Neste caso, a ciência não é uma boa guia
Entre partir e ficar
Desistir ou tentar
Continuar ou mudar
E projetar uma máquina
Arquitetar uma casa
Planejar um sistema
Não há afinidade alguma
Não há cálculo, lei ou fórmula racionais
Capaz de justificar uma escolha na vida
E isso também vale pra opções políticas
No sentido da sociedade
Com a qual sonhamos
E que queremos deixar de herança
Cada escolha na vida
É um salto de fé sobre um abismo
E como a fé é domínio
Dos deuses e deusas
A ciência
Que é arte das pessoas
Esse ser prometeico
Não apita
E se fiar nela é equívoco
Então, quando alguém lhe perguntar
Porque escolheu isso e não aquilo
Diga que você deixou-se levar
Por um pássaro que pousou na sua janela
E grasnou um nome familiar
Por uma nuvem que lembrou-lhe a face de alguém
Por uma árvore que balançou enquanto passava sob ela
A caminho de uma grande aventura
Por aquela estranha sensação no ar
Que sentimos, mas não sabemos definir nem explicar
E que soa exatamente como uma voz lhe dizendo:
Vá em frente, vai dar tudo certo

Tarefas da revolução

Na próxima semana
Tenho que apresentar
Um seminário
E revisar
Três projetos
Pouca coisa
É verdade
Não vim aqui reclamar
Mas acontece que hoje
Tem uma criança em casa
Desesperada por brincadeira
E na ordem de importância
Das tarefas imediatas
Da revolução
É muito mais imprescindível
Para a humanidade toda
Eu diria
Que pilhemos como piratas a praia
Que giremos no galho da árvore
Como ginastas
Como pássaros ou macacos
Que ensaiemos nossos primeiros passos
Na lua
Como astronautas
Que descubramos quem imita melhor
O som dos animais
Isso tudo importa mais
Que qualquer teoria
Que qualquer trabalho
Se queremos um mundo novo
Para as nossas crianças
Comecemos agora mesmo

Agradecimento

Certa feita
Vi-me
Na contingência
De não ter
Nem saber
Como agradecer
Embaraçado
Perguntei
Como poderia
Responderam-me
Agradeça
Ajudando
Alguém que precise
Também
Um dia

Fica mais um pouco

Onde vais com essa pressa?

É tarde

É cedo
Faço-lhe café
Com torrada e geleia
Mas antes fique deitada comigo
No meio peito
Só mais uns minutinhos
Que eu gostei de você
E ainda nem me acostumei com teu cheiro
Muito bom, se quer saber
Cheiras a terra molhada
Como eu ia dizendo
Não posso deixar-te ir
E se eu não mais te ver?
Sabe como é
A vida é cheia de surpresas
Boas e ruins
Tantas coisas podem suceder
A partir do momento que saíres
Daqui, de cima de mim

Não vês que lá fora o tempo passa
A vida acontece
E eu tenho trabalho
Tenho lugares onde estar
Pessoas a falar
E coisas a fazer?

Ora, não é por isso que vais embora
Sem uma transa de despedida
Não, não senta na beirada da cama
Ela é como uma ilha
E nós somos como náufragos
Olha que faço birra
Faço manha
Passo os pés pelas suas costas
Faço cosquinha
E dou mordida
Na bunda
Como é teu nome mesmo?
Ah, verdade, tão bonito!
Não tinha reparado nesta marquinha
Perto do seio
Me conta
Um segredo?

Quem sabe outro dia, eu volto
Tenho que ir, sério

Tu não me enganas, fica agora
Isso, larga o celular
Repara no bico
No meu dengo
Vais resistir assim mesmo?
Lá fora faz sol, é primavera
Mas se você se for
Aqui dentro será inverno
Com chuva
Vai, esquece o mundo
Esquece o emprego
As outras pessoas
Elas usam roupas
Não andam nuas
Como nós dois
Vem, te aconchegas
Que ainda é cedo
E já é muito tarde
Tarde em demasia
Pra não amar
Depois de procurar
Em tantas camas frias
Por um amor como este
Que havemos de ter
Um dia

O querer

Não, não sei
O que quero dessa vida
Se é exatamente esta
A brincadeira
Acaso soubesse
Ela perderia
Toda a graça
E eu não sou estraga-prazeres
Nem me agrada azedar
Surpresas

Quem comeu meu pedaço?

A princípio
Não sabia
Só sentia
Que havia
Nascido
Em falta
Faltando um pedaço
Vim ao mundo
Comido
Arrancarem-me um naco
Tentei preenche-lo
Com tudo quanto é ainda mais vazio
Álcool, amores
E objetos que se compram
De tudo quanto é tipo
Para todos os gostos
Até que ao invés
De cavar
Profundos abismos
Para enxertar
Num buraco estreito
Resolvi entrar
Naquela cova rasa
E me senti confortável lá
Dentro
Vi que ela era menos
Ameaçadora
Se eu a aceitasse
Recolhido
Em seu seio
Deitado
Mas não derrotado
Ainda vivo

Pelas horas

A essa hora
Tem pessoas
Trabalhando
Estudando
Voltando para casa
Cansadas
Pessoas sofrendo
Doentes
Na cama
Pessoas festejando
A vida
As amizades
A essa hora
Tem pessoas
Se amando
E se odiando
Pessoas tentando realizar
Seus sonhos
Tem pessoas sós
E acompanhadas
Pessoas terminando historias
E começando outras
Pessoas se encontrando
E se separando
Pessoas sem nada pra fazer
E outras com tantas
Tem tantas
Pessoas
Que minhas dores
Meus amores
Minhas dúvidas
E angústias
Parecem coisa pouca
Pouca demais
Pra uma só pessoa

Um passeio

A vida é um passeio
Se perca
Se demore
E se for pra se apressar
Que seja só
Pra sentir a brisa
Do vento
Nos cabelos
Estar vivo
É um milagre
Que acontece
Todos os dias
Com bilhões de nós

Revolução

Eu cheguei a acreditar
Um dia
Que só o fuzil
Fazia uma revolução
Que era preciso lavar o chão
Com sangue
Para redimir a humanidade
Depois passei a acreditar
Que só a verdade
É revolucionária
Que é tudo uma questão
De conhecer as coisas
Como elas de fato são
Mas nada disso nos leva muito longe
Porque a verdade
Sustenta-se em última instância
Na ponta de uma arma
E quem puxa-lhe
O gatilho
Fá-lo em nome de uma verdade
Foi assim que descobri
Que só o amor é revolucionário
Sem amor
Não há revolução
Com um fuzil
E uma boa argumentação
Ou vice-versa
Pode-se mudar a cabeça de uma pessoa
Mas se você não toca e muda
Seu coração
É tudo em inútil
É tudo em vão
E aí não tem jeito
Não há multidão
Não há bandeira
Estratégia
Ou instituição
Que resolva nosso problema
Mudar o mundo
Começa dentro
Pelo avesso
Na forma que o vemos
E parte dele fazemos
Se você não aceita a tua família
Teus amigos
Teu vizinho que seja
Com e pelos seus próprios defeitos
Como espera aceitar o mundo inteiro?

Epifania

Conheço poesias
Que se limitam
A um mero arranjo
Bonito
Atraente
De palavras
Como um buquê de plástico
Embora aparentemente
Vistoso e inteligente
Não despertam nenhum sentimento
Nem sequer uma emoção
São como pessoas lindas
Porém vazias
Podem ser sedutoras por fora
Mas estão mortas
Por dentro
Podem despertar tesão
À primeira vista
Mas a foda
É péssima
O gemido
É monótono
E o gozo
É fingido
Assim como as fodas
As boas poesias
São epifânicas

Um pouco de Clarice e de Chico

Sou um pouco
Como Clarice
Nada conheço
Ou quase nada
Das grandes obras
Dos imortais
Da pena
Dos ilustres
Beletristas
Do passado
E suas obras imortais
Quanto mais
Poderia eu
Declamar-lhes
Um poema
Uma estrofe
Sequer um verso
De memória
Escrevo poesias
Porque saídas do fundo
Do mais íntimo
Como um grito
Passado dois dias
Mal lembro que havia-as escrito
Será que tenho algo
De Francisco
Assim como Xavier tinha algo
De poeta?
Alguma coisa me diz
O que escrever
Embora não diga o porquê
Escrevo não com a cabeça
Tampouco com a mão
Não tenho métrica
Nem regras
Escrevo com a alma
O que lhe comunica o coração
Escrevo por instinto
Como faz o salmão
Subindo o rio
Pelejando contra a correnteza
Para ter seus filhos
No mesmo exato lugar
Onde nascera

A morte

Se eu morrer amanhã
Tudo terá valido a pena
Isso quer dizer que a vida
Não tem um sentido
Um ponto de chegada
Um objetivo
Senão um único princípio
O objetivo da vida
É vivê-la
Somente isso
Ela simplesmente é e está
E o que foi, é como deveria
Ter sido
Daí que não há tempo
Para arrependimento
Ou para desperdiçar
Com pudores
Amores comedidos
Medo ou rancores mal resolvidos
A vida é como um relacionamento
Amoroso ou fraterno
Ela não dá “certo” ou “errado”
Aliás, com que critério
Medimos da vida o sucesso?
Ela não é uma corrida de cavalos
Não se está à frente ou atrás
Não há páreo
Tampouco pódio
“Que desperdício
Foi tão jovem
Tinha tanto potencial
Faltou-lhe pouco”
Para quê? Eu pergunto
Se eu morro amanhã
Vou tranquilo
Deixo de mim um pouquinho
Em cada rosto querido
Em cada ombro amigo
Em cada desconhecido
Que cruzou comigo
E de alguma maneira
Para ele
Fez sentido
Esse encontro fortuito
Se eu morro amanhã
Parto em corpo
Mas fico em espírito
Nalgum conselho
Que acaso tenha dito
Nalgum gesto bonito
Que fica de exemplo
Claro, nos muitos malfeitos
Que não se deve tornar a fazê-los
Fico na memória
De um carinho
De um riso
De bons momentos
Fico nesta poesia
No brilho dos olhos
Marejados
De quem a lê
Fico nalgum arranjo de flores
Colhidas pela estrada
Que a uma pessoa amada
Dei de presente
Se eu morrer amanhã
Nada de chororô
Enterrem-me debaixo
De uma árvore
De copa larga e frondosa
Daquelas que farfalham
Suavemente
Ao balanço do vento
Deem meu nome
A um bebê risonho
De cabelos encaracolados
E eu viverei de novo
Pois todo o mundo
Merece uma nova chance
Se eu morrer amanhã
Tenham certeza que a morte
É só o recomeço
De um ciclo que fazemos
Da lagarta à borboleta
De tempos em tempos

Compreensão

Não desejo que não julgues
Que te cales
Juízo
E boca
Nos todos temos
E somos livres
Para exercitá-los
Ao contrário
Quero que digas
Que fales
Aquilo que veio ao mundo
Dizer-nos
Mas para isto
Antes é preciso saber que
A partir do momento
Em que você começa a julgar menos
E a ouvir mais
É quando você aprende a abrir o espírito
Ao invés de fechar o corpo
Em preconceitos
A descentrar teu ego
Rodopiá-lo para fora do centro
Longe de seu umbigo
E a perceber o certo e o errado
Sob uma pluralidade de ângulos
Quanto o teu tão legítimos
Que fazem do teu certo
E do meu errado
Intercambiáveis
Em princípio
É neste exato momento
Em que nasce o entendimento
Mútuo
Como saber compreensivo
Como empreendimento
Coletivo
Como esperas ser entendido
Se não consegues compreender outros sentidos?
Meu mundo é pobre e exíguo
Se não partilhas o teu comigo
Meu espírito é triste e vazio
Se num único indivíduo
Amuado
Ele habita sozinho

Vacilos

Eu já fiz muita coisa
Errada
Mesmo sabendo
Qual era a certa
A se fazer
Senti vergonha
Martirizei-me
De culpa
Humildemente
Peço desculpa
E tal como eu pude
Aprender
Com tanto vacilo
Espero que possam
Perdoar-me
Um dia
Aqueles que tenho ofendido
A morte
É certa
E a vida é muitíssimo
Pouca
Para gastá-la
Toda
Com rancor
Afinal
Que atire a primeira pedra
Quem nunca cometeu
Um só vacilo

Consulta com Dr. Chico

Acuda, Chico!
Venho sentindo
Uma pontada
Aguda
De dor
No órgão
Do amor
Atacou-me febre alta
Tive sonhos
Molhados
Palpitação
E até alucinações
É grave doutor?
Perguntei-lhe
Recomendou-me
Longos passeios
Cantar a plenos pulmões
Junto ao violão
Contemplar a lua
Sair à rua
E beber a tempestade
Pois é inútil dormir
Que a dor não passa

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Deus é criança

Dizem que deus
Escreve certo
Em linhas tortas
Que o universo
É misterioso
E conspira
Nós que não compreendemos
Seus desígnios
Suas maquinações
Eu prefiro pensar
Que deus
O universo
Como quisermos chamar
É uma criança
Que se ri
E se diverte
Às custas
Da nossa condição
Humana
Mas ela não faz por mau
Apenas é criança

A medida da troca

Entre o que tu
Queres me dar
E o que eu
Posso tomar-lhe
E vice-versa
É, precisamente
Onde reside
O ponto arquimedi-
humano
A medida
Exata
Da troca
Da dádiva
Entre duas pessoas
Como sujeitos
Livres e iguais
Em desejos
E sonhos

Amor inventado

Eu e o Cazuza
Adoramos um amor inventado
E não é, precisamente
O amor uma invenção
Uma invencionice
Da cabeça
E do coração?
Não é o amor
A mentira mais honesta
E a verdade menos sincera
Que existe?
Porque o amor não é coisa dada
Um fato que acontece
Que nasce e cresce
Independentemente
Da vontade
É coisa criada
Imaginada
É a autopoeise
Da alma
Que acha
Que finge
Que gosta
Doutra
A tal da cara-metade
E haja metades
Pra tanta metade
Em falta
É casa construída na areia
Tão bela e tão frágil
É traquinice
De criança travessa
Que se perdoa fácil
Com um puxão de orelha, não
Com um beijo na bochecha
De condescendência
E “vá brincar novamente, sua pentelha”
É a mentira mais verdadeira
E a verdade mais mentirosa
Que a gente pode inventar
Ao longo duma vida inteira
Gostosa de mentir
E boa de acreditar
A gente se engana
E se ilude por querer
Querendo
De boa fé
E não há motivo
Por mais que doa de dor
Pra se arrepender
Quem nos dera
Todas as mentiras do mundo
Fossem tão verdadeiras
Quanto mentiras de amor

A estrada

Poucas coisas são mais tristes
Do que a estrada
Vista pela janela do ônibus
No silêncio da madrugada
As luzes miseráveis no horizonte
Contra o negrume lúgubre da noite
São como fogos fátuos
Que atestam a nossa pequenez
A nossa brevidade
As casas de fazenda
Solitárias
Pontilhando como vagalumes
Parecem saídas de um filme de terror
As luzes mortiças das cidades
Como um grande cabaré decadente
Frágeis contra as trevas
Que as ameaçam engolir
As ruas desertas, mortas
Como vielas de cemitérios
Feitos de concreto e aço
Que ninguém traz flores
Os postos e máquinas
As fábricas e armazéns
Os motéis e bares
As igrejas e bordéis
Tudo me lembra abandono e solidão
Que nem o estrelado do céu
Faz mais alegre
As rodoviárias melancólicas
Com tantos caminhos
Não nos dizem pra onde ir
São entrepostos de almas
Perdidas e magoadas
Vendendo-se e trocando-se por aí
O cadência monótona do ônibus
Me embala na poltrona
Mas eu não consigo dormir
A mente vaga e fica
Em cada árvore
Em cada vaca
Em cada pobre casa de beira de estrada
Tristes e solitárias
Que passam rápidas
Fugindo como presas acuadas
Do tempo e da morte
Do desgosto e do esquecimento
Essa noite não tem fim
Porque a viagem
Jornada longa e demorada
É dentro de mim
Não se apresse motorista
Eu não tenho parada
Aonde ir
Descansar a alma
Calejada
Nessa beira de estrada
Sem fim

Réquiem para Manoel de Barros

A margarida
Cortada
Jazia
Derribada
Sobre a grama
Quando a criança
Que passava
Cutucou-a
Cuidando-a
Morta
A flor então
Despertou
Olhou à criança
Através da janela
D'alma
E disse:

Ponha-me
Num copo
D'água
E eu flores
Serei
Nova
Mente

Careta

Eu me divirto
Fazendo caretas
Gosto de me comunicar
Com a cara

Uma careta diz muito
As vezes mais do que palavras
Espécie de telepatia
Como troca de olhares
Passa a ideia de cumplicidade
De “tamo junto”
“Entendeste?”

Para cada pessoa
Uma careta diferente
Pra adultos
Levanto a sobrancelha
Faço cara de sufoco
De “tá duro”
Pra crianças
Mostro a língua
Envesgo os olhos
A careta clássica
Pra quem gosto
Faço bico
Mando beijo
Escancelo a boca
Num sorriso
Mas para desconhecidos
Na rua
Faço cara de paisagem
A mais sem graça
Das caretas

Será que entendem
Que isso é cacoete?
Eu pisco
Mordo os dentes
Lambo o beiço
Faço careta
A torto e direito

O burro (ou Nas asas de Mário Quintana)

Pode gritar
Pode açoitar
Não ando
Além do meu ritmo
Você se irrita
Briga
Ganha uma úlcera
E menos anos de vida
Eu empaco
E quando quero
Caminho
Lépido
Sorrindo
Pra qualquer lado
Que me der na telha
Viverei um século
Nessa leve toada
A vida passa
Todos vocês que acima estão
Sufocando nosso espírito
Vocês passarão
E nós passarinho
Como andorinha
Em algazarra
Sob a chuva de verão

Não somos maus

Não somos maus
Fazemos maldades
Mesmo incontáveis
Não é igual
Somos condenáveis
Mas nem sempre culpados
Dirão os Juízes
Em seu veredito final

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

(A)Flor(a) vagina

A-
Flor-
A
Vagina
Vulva
Em flor
Lábios
E clitóris
De-
Flora

A natureza (da mulher)

A natureza
Não é mãe
Não é virgem
Não é santa
A natureza é puta
É selvagem
É despudorada

A natureza dá
A vulva
Para quem quiser
A natureza gosta de chupar
E de meter
A natureza quer gozar
E sentir prazer
Quer gritar
E gemer
Quer se libertar
E ser
Apenas mulher
Natureza
Livre
Que trepa
Faz sexo
E até amor
Que goza
Sangra e sente dor
Como os bichos
Seus filhos
Nascidos da terra e do mar

A natureza tem
Uma buceta
Úmida
E quente
Caverna que arde
Intensamente
Numa densa mata de pentelhos
Aos que buscam conhecer
Seus prazeres e mistérios
Esteja ciente
Ao entrar
Seus lábios
Ela abre
Se quiser
E fecha
Quando não quer

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Da palavra lavrada à mão e percorrida a pé

Colocada diante
Das misérias
E injustiças
Do mundo
A palavra
Parece tão pobre
A minha poesia
De repente
Parece tão vazia
Minha diatribe intelectual
Tão inútil
Minha dor sentimental
Tão fútil
Afinal
Só entende
Quem caminha
E só exprime
Quem manuseia

Dê comigo um rolê?
A cabeça pensa
Onde os pés estão
E quem não anda
Não sente o grilhão
Que lhe prende

Ensina-me, vida
A pensar com a mão
Como eu vejo com o pé
Mas não se apresse
Ainda há muito chão
Pra calcar com fé

Sinta a vida

Respire fundo
Encha-se de mundo
Divida comigo
O ar que dá a vida
No peito cabe tudo
Mais que imaginas
Sinta teu corpo
Nossos sexos
Teu gozo
Estás viva
Em carne
Sangue e lágrimas
Feitas de sonhos
Loucos

O nada

O nada
O que é?
O humano desconhece
Essa entidade
É-nos talvez a única
Experiência vedada
Estamos sempre cercados
De algo
Que projetamos
Infinitamente
No tudo
Se somos pura consciência
Da vida
O nada é a morte
Cuja melhor definição
É o sono profundo
Eternamente

Tudo acaba bem

Podes saber
Sem porquê
Incrivelmente
Tudo acaba bem
Pois há de ser
Recomeço
Novamente

Igualmente especiais

Não há pessoas especiais
Somos todos iguais
Em princípio
Assim mesmo
Nós todos somos responsáveis
Por fazer as pessoas ao lado
Se sentirem especiais
Como são, de fato

Tribunal do preconceito

Julgar e acusar
As pessoas
É como cuspir
Contra o vento
Tenha certeza
Que volta
Como balas
Bem no meio
Da cara

Estereótipo
E prejuízo
Que diz mais
Não menos
De quem fala
Do que do outro
Feito réu
Sem defesa
No tribunal
Do preconceito

Onde está a justiça
Em julgar o diferente
À luz da tua própria
Ignorância
E verdade?

Hipócrita
Cínico
Cheio de raiva
Eu já cuspi muito
A torto e direito
Mas cansei de lavar
De cuspe a minha cara
Hoje prefiro trocar
Saliva
Num beijo

Não têm explicação

As vezes eu penso
Que só quando pararmos
De pensar
É que vamos começar
A saber
Quando pararmos de desejar
É que vamos ter
Quando simplesmente estarmos
É que vamos ser

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Lembrete para não lembrar

Será que se eu morro
Num dia inédito
Numa esquina sem placa
Entulhada de pessoas emburradas
Que não esquecem os problemas
A caminho de casa
Vão chorar por mim?
E se choram
Como eu posso partir?
Se é na lembrança
Life-support mechanism
Que plugado eu vivo
Materializado meu espírito qual cicatriz
No peito magoado
De quem dá pela minha falta?
Não quero parecer ingrato
Justamente o contrário, eu me importo
E isso torna a retirada, negociada, mais difícil
Eu queria apenas me deixar ir
Sem adeus, obrigado por tudo, um abraço
Aproveito e deixo aqui registrado:
Adeus, obrigado por tudo, um abraço
Foi bom enquanto durou,
Nem sempre, mas
Estou indo, serenamente
E agradeceria se ninguém percebesse
Muito menos viesse junto
Para uns a festa acaba primeiro
Quero dormir
Fiquei bêbado demais
Bebi muito rápido
E a verdade é que eu nunca soube beber
Saio de fininho
E, do quarto, me divirto ouvindo as risadas
A cantoria alta
Amanhã é um dia normal
Para quem é normal
Não pensem em mim
Pensem na desculpa esfarrapada a dar no trabalho
Nas crianças esperando um futuro
Na mãe que a gente tão pouco vê
Depois que cresce
Ou pensem apenas em ficar em casa sem pensar
Vendo tevê
Largados no sofá
A limpeza da casa por fazer
Naquela preguiça boa
De viver
Com tantos bons porquês
Que existem para se viver
Fiquem com eles
Eu só não estaria mais aqui
Não carregaria esse peso do vazio
Que arrasto feito rés
Que tristeza que nada
Mágoa não levo
Enquanto ninguém estava olhando
Cavei um buraco e me plantei
Olhem, um disco voador!
Entrei no mar
E ele deu cabo de mim
Me levou pra navegar
Sem corpo, por aí

Pertencimento

O mundo anda tão cheio
Mas nós nem sempre vazios
Estamos cada vez mais sós
Mas não necessariamente sozinhos
Vivemos tão juntos
Mas em companhia?
Antes eu me sentia
Tão vazio
Tão sozinho
Porque procurava o preenchimento
Nos outros
Foi preciso voltar-me para dentro
Para perceber que o que eu buscava
Não está nem fora
Nem dentro
Mas na relação entre ambos
No vínculo entre eu e o mundo
Se o vínculo é de amor
E pertencimento
Pode-se estar completamente só
E ter o mundo todo
Ao mesmo tempo

Amor útil?

O amor deve
Servir
Pra fazer rir
Se não faz
Não serve
Amor que não ri
Não é amor
É tédio

Contra a pressa

Quem tem pressa
Passa, rápido
E nem vê as coisas
Passarem, devagar;
Anda correndo
E tem medo de tropeçar
Só olha à diante
E não se permite, voltar,
Rodar sobre os calcanhares;
Não olha pra baixo
Pisa em cima
E nem percebe
No que pisou
Não olha para o lado
Nem vê o que desperdiçou

A pressa é inimiga
Da vitória
Ou da perfeição
Mas quem não se apressa
Pouco se interessa
Por competição
Deixa a pressa
Pra quem quer ganhar
Pra quem quer chegar
A algum lugar
Mas que não vê que onde está
É o lugar para se estar
E se demorar
Porque no segundo seguinte
Já não mais se está

Quem tem pressa
Não deixa marcas
Não cria raízes
Não estreita laços
É um solitário
Correndo contra si
E de si mesmo
Numa peleja sem fim
Não se engane
Com o que dizem
O mundo é lento
E a vida de nós só exige
Serenidade e calma

Se você corre
E se apressa
E tem medo de ser atropelado
Por suas próprias pernas
Não culpe o tempo
É você quem põem-nas
Em movimento
Quanto a mim
Que vim a passeio
Apenas abro minhas asas
E voo, ao sabor do vento

Quem tem pressa
Se apressa em ganhar
Ganha tempo pra desperdiçar
E desperdiça o tempo de amar

O anúncio da cigarra

Era plena primavera
Eis que de repente
Ainda tímida
A primeira cigarra
Da iluminada temporada
Inicia sua cantoria
Festejando o verão
Que ainda longe
Mal se anuncia

Enternecido de paixão
Parei com o trabalho
E fui ouvi-la
Deitada numa rede
Tocar seu violão

Sequer durou uma música
Mas foi o suficiente
Me fez ciente
Que mais belos dias
De alegria, virão

Seja bem vinda
Cigarra!
Faz tua folgança
Tua algazarra
Eu, que sou formiga
E só trabalho
Me rio e me divirto
Com a tua farra

Igualmente especiais

Não há pessoas especiais
Somos todos iguais
Em princípio
Assim mesmo
Nós todos somos responsáveis
Por fazer as pessoas ao lado
Se sentirem especiais
Como são, de fato

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Comunicação

Quando eu falo
Não sei o que ouvem
Quando respondem
Não sei o que falaram
Mal sei o que ouvi
Quando falam
Não sei o que ouço

E o que eu faço?
Mantenho o ouvido apurado
E o espírito, este bem aberto

Pacifismo

Comunistas e não comunistas
Deixemos esses esquemas,
Mesquinhos, de ver a vida
De conceber a realidade
Como campo de batalha
Quem faz guerra
São Estados
E não pessoas
É já hora de recursamos
Essas expressões militares
Quem tem lado é exército
Que divide o mundo em metades
Onde cabem apenas duas
Tristes e solitárias
Possibilidades:
Ou bem está conosco
Ou bem está contra nós
Mas onde eu finco os pés
Não cavo trincheira
Entre eu e você
Se estende mais do que uma Terra de Ninguém
Podemos ser outra cousa além de amigos ou inimigos
Companheiro-em-armas?
Isso é patente?
Não sou, desculpe-me
Sou pacifista
Guerra, só se for de travesseiros
Entenda, não recuso a ideia
De que só a luta muda a vida
Recuso o que você entende por luta
E sobretudo por vida
Pra mim ela se parece mais com um carnaval
E eu quero todo o mundo no meu funeral
Você não concorda?
Contigo é preto no branco?
É durão?
Senta aí, vamos conversar
Traz mais um copo, garçom!

Vastidão

O mar é muito vasto
Nem cabe no meu pensamento
Quantos baldes dele tenho que tirar
Até o mar esvaziar
Imagina quanta coisa não acontece
Lá embaixo
Naquelas profundezas abissais
E se você olhar
Entre as pedras
Na água rasa onde a terra o mar vem beijar
Verá um universo tão vasto
Fervilhando
Quanto o próprio mar
O mar é muito vasto
Mas mais vasto mesmo
É o nosso olhar

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Um gesto

Nesse vasto vasto mundo
Há tantos gestos bonitos
E um dos mais
É encostar
Testa com testa
E se demorar
Fixando o olhar
Ou mantendo-os fechados
Tanto faz
A beleza está na união
Que ele simboliza
"Te amo"
"Estamos juntos"
"Vai ficar tudo bem"
O sentido é universal
Testa com testa
Entre duas pessoas
Entre um humano e um animal
Entre um adulto e uma criança
Entre um casal
Mas repare bem
É pra encostar
E não pra bater
Cabeça

Pra começo de conversa

Ser crítico
Não é ser chato
Achar que os outros
Estão errados
Não é concluir que é você
Quem está certo
E desejar mudar o mundo
Não é querer um só pra você

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Radical

Eu acho linda a palavra radical
Poderia repeti-la todos os dias
Radical, radical, radical, radical

Só não estrague-a com ismos
Não me venha com radicalismo
Não confunda-a com os extremos

O radical não está fora
Antes está dentro
Ser radical é descer às raízes
Múltiplas e plurais
Do que somos
E do que seremos

Um conto machista

A mulher passa pela rua
Um homem cruza
Ela de cabeça baixa
Desvia o olhar para o chão
Suspende a respiração
E continua
Ele não tira a vista
A estupra com os olhos
Torce o pescoço
Torce a cara
A carranca medonha
De um monstro
Grunhe como animal
Palavras obscenas
Não há revide
Ela é presa fácil
Não pode defender-se
Ele sabe disso
Ela também
Ela quer correr
Quer gritar
Mandá-lo à merda
Castrá-lo com uma faca cega
Como se castra um porco
Ele quer possui-la
Quer exercer seu domínio
Sobre o corpo feminino
Se não com o pau ou com a mão
Que seja com as palavras
Que violenta simbólica
Psicológica e moralmente
Reproduzindo papeis
Afirmando posições
De poder e dominação
Findado o abuso
Cada um segue o seu caminho
Ela, com medo
Temendo o próximo desconhecido
Que irá reclamar seu direito
Sobre o corpo feminino
Ele, satisfeito
Sentindo-se másculo
Forte e corajoso
Cheio de si
É o pior dos covardes

Depois da chuva

Foi-se a chuva embora
Abriu-se o azul do céu
Em sol poente
Acima do mar suave
Folgazavam gaivotas
O dia despedia-se em tarde
E a mata reverdejada
Me convidava à arte
Da fotografia
Trago a câmera
E os pés descalços
Na praia de areias molhadas
Vindo ao longe
De bote a remos
Um senhor de idade
Na mais bucólica das cenas
Para a composição perfeita
Só faltava mesmo
A sua senhora de sombrinha
E longo vestido de chita
Ele para de repente
Procura algo nos bolsos
Um pequeno objeto
Aproxima-o do ouvido
“Alõ?”, diz ele
“Não, tô remando”
E desligou
O romantismo acabou
E eu voltei a 2014

Ode à vida

Sentei-me à beira do desconhecido
E contemplei
O que não podia conhecer
E, de repente
Fez-se precipício
E pude perceber as almas
Lá embaixo
Às milhares
Atarefadas, atabalhoadas
Colidindo-se
Extraviadas entre carros e concreto
Outrora desconexo
Da perspectiva das nuvens
O cheiro de morte
Ressudando do asfalto
A cerveja barata
A pressa
A comida requentada
Os pequenos acasos
Que pululavam
Vistos do alto
E os sorrisos
As brigas
O amor e ódio
Pareciam fazer mais sentido
E como tudo era belo
Do silêncio pacífico do céu
A descortinar dádivas diárias
Desperdiçadas sem perdão
Uma espécie de milagre
Aquele carnaval
Misturando suor e saliva
Lágrimas e ressaca
E eu fiz menção de descer
Juntar-me ao cortejo
À procissão dos condenados a viver
Misturar-me ao desfile
Transar na rua
Levar socos e pontapés
Abandonar e ser abandonado
Correr o risco
De acabar sozinho
Velho sem ter vivido
Num dia nublado qualquer
Enquanto duas pessoas
Fugindo da chuva
Se guardam mudas
Debaixo de um toldo furado
Na esperança da banda passar
Se guardando
Para quando o carnaval chegar

Holismo

Pessoas várias
Especiais em si mesmas
Passarão e passarinho
Voando
Pela tua vida
Como numa longa migração
São caminhos
Que se cruzam
Seguem juntos
E depois se apartam
Para continuar
Cada qual a sua sina
Mas aí nada será mais o mesmo
Se você souber ensinar
E aprender
Não use as pessoas
Não espere ganhar
Dar é receber
Ofereça algo
Ainda que em troca de nada
Deixe uma marca
No ser de alguém
Algo para se lembrar
Algo que pode mudar a sua vida
Para sempre
Sua forma de ver e sentir
E você fará enternamente parte
Dessa pessoa
O mapa da vida não tem um sentido
Na verdade
É uma rede intrincada de possibilidades infinitas
Que não se constrói sozinho
Cada um de nós tem papel e importância
Ao criar as possibilidades que outros irão explorar
Vivemos várias vidas
Somos várias pessoas
Nem sempre eu consigo
Nem sempre eu tento
Mas eu desejo
Sempre
Fazer a diferença na vida de todo o mundo
Que por azar ou sorte
Me encontrarem por aí
Perdido, zanzando
Em busca de algo que não tem nome
Nem se pode nomear
Que não admite posse
Mas se pode encontrar
Se se souber onde procurar

Mãe

Mãe,

Eu tenho ciência
De todo o investimento
Que você fez nos últimos 29 anos
Sei também que ele está demorando acima da média
Que já era para ter-lhe rendido bons frutos

Mas, veja
Este é um investimento de longa maturação
E seu valor não se traduz em bens e imóveis

Agora eu entendo essa ideia simples
Que você tentou me ensinar a vida toda
E eu era egoísta demais para ouvir
Que o conhecimento
É a maior riqueza que uma mãe pode deixar de herança

Como todo filho
Eu carrego remorso e culpa
E como todo filho
Eu quero lhe pagar tim-tim por tim-tim
Mas não em dinheiro
Porque sei que não foi isto que você investiu em mim
Foi amor, carinho, compreensão
Abnegação, dedicação
E eu poderia arrolar palavras ad infinitum
Que só você, afinal, sabe pelo que passou

E agora eu compreendo
E sou grato
Vou pagar-lhe não em dinheiro
Mas com orgulho
E com a sensação de que tudo valeu a pena
O mundo não lhe deu a oportunidade de estudar
Mas mesmo assim você me deu
Vou ser então tudo o que você sempre quis ser
Uma intelectual, uma estudiosa, uma escritora
Porque é isso que você é, afinal
E é isso o que eu sou
Porque eu sou você

Com amor,
Seu filho

Primavera

Eu acordei com um pressentimento
A manhã estava quente e abafada
A terra transpirava
E a montanha respirava, serena
Olhei a mata ao meu redor
Majestosa, ancestral, arcana
Ela me olhou de volta
Com seus olhos ferinos
E no entanto maternalmente meigos
E eu não senti medo
Senti a paz absoluta
Por um instante eterno
Parou o inexorável tempo
E foi como se toda aquela beleza
Me esmagasse em seu seio
Mas eu não senti dor
Nem me senti só
Antes me senti um só, com tudo
Me senti em casa, de volta ao útero
Do universo
E vi que as flores balouçavam
As árvores farfalhavam
Os pássaros chilreavam
Os insetos formiguejavam por toda a parte
E tudo estava vivo
E falava
Comigo
Eu apurei os ouvidos
E o que me disseram foi como um desígnio:
É a primavera que eu anúncio
Vá espalhar a boa nova

Calçadão

No calcadão
Tem tudo quanto é gente
Tem gente comprando ouro
E gente vendendo sonho
Tem gente de talento
E gente que nem tanto
Tem gente explorando o sexo
Gente vendendo o corpo
Tem gente se drogando
Gente pedindo um trocado
E gente correndo atrás do pão
Tem gente namorando
Gente se conhecendo
E gente se despedindo
Tem gente anunciando o fim do mundo
E gente oferecendo a salvação
No calcadão tem gente de todo tipo
Tem gente pilantra
E gente honesta
Gente preocupada
E gente em festa
Tem gente boba
E gente esperta
Gente perdida
E gente achada
Tem gente normal
E gente esquisita
Tem tanta gente
E a gente sendo só mais um
Até some
No meio de toda essa gente comum

A graça

Engraçada
A vida
Um dia
De graça
Ela se engraça
Conosco
E nos dá graças
De novo
E nos enlaça
A todos
O choro passa
A fé recobra a alma
Eu me rio
D'água
No oceano
E acho graça
Porque a vida
Vivida
Sempre nos acha

A vida é engraçada
A vida é uma graça
A vida é de graça
Vai, se engraça
Que a vida passa
Eis aí a graça

Muito dentro da gente

É feminista
Mas quando xinga
Xinga uma mulher
A puta é a sua preferida
Ou seja, a mulher não submissa
E mesmo quando tenta ser equitativo
Inicia sempre pelo gênero masculino
A mulher vai entre parênteses
Caro(a); prezado(a)
E adora usar o falo metafórico
Para domar os discursos
E consequentemente os corpos
É pró-homossexualidade
Mas tem vergonha de ser visto
Só, com um gay
Com medo do que irão pensar
E se desarma diante de um
“Hummm...ui”
Carregado de ironia homofóbica
Daí recobra
Ainda que a contragosto
A postura de macho
Não faz piada
Mas abre um sorriso desconfortável
Ante uma
Quando deveria fechar a cara
Ser honesto, se opor, argumentar
E machismo e homofobia entre amigos e familiares
Daí pode?
Como se a atitude a mudar fosse alheia
Estivesse em outro lugar que não na nossa realidade
Como se o mal estivesse numa tal “sociedade”
Que existe sabe-se lá onde
E não aqui e agora
Na vida, no cotidiano
Dentro de nós mesmos
A “sociedade” é patriarcal
Eu não
Mais do que princípios
Mais do que teorias
Lindas frases feitas e vazias
Precisamos de atitudes
Comportamentos coerentes
Exemplos e práticas
Tomar ciência acrítica do problema
É a parte mais fácil
Agora vem a parte difícil
Empenhar-se honesta e corajosamente na luta
E ela começa com você, comigo, conosco
No dia-a-dia
Nos pequenos espaços
Nas relações próximas
Para só depois chegar neles, nos outros
Na sociedade como um todo

Criança interior

Tem vezes
Quando eu sonho acordado
Sinto como se fosse um balão
E penso que se abrir os braços
Posso sair voando
Na minha imaginação
Saio num pique
E me dá uma coisa doida
De vontade
De parar o que estou fazendo
Para girar cambota
Porque não caibo mais em mim
E se me chamam à realidade
Eu digo assim:
Dá licença?
Vou ali dar uma pirueta
Volto já
E sobre a mesa
De trabalho
Deixo avisado:
Hoje é dia da criança
Interior
Feriado mundial
Fui plantar bananeira
Na grama do quintal

Pós-pós

É tanto
Pós-
Pós-isso
Pós-aquilo
Que eu me perco
Entre os ismos
Nem sei mais onde
Me pós-

Da cela

Põe em parênteses a vida
Suspende a pouca alegria
Trabalha mudo noite e dia
E esquece tuas promessas
Que a necessidade aperta
As contas não te esperam
Chora a criança na miséria
A menina pobre na favela
O homem de raiva na cela
Ah, como a vista é bela!
É tão linda a cidade da janela

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Praticar a justiça

Quem sou eu para julgar
Onde o outro fraqueja
Onde ele falha ou desiste?
Eu, que, por graça do destino
Tive todas as condições
E oportunidades necessárias
Que sei eu das dificuldades dos outros?
Dos erros e das culpas
Só conheço as minhas
E a despeito de saber disso
Hei de passar a vida toda
Como todas as demais pessoas
A julgar e condenar todo o mundo
É bom, portanto, que
Além de oferecer-me também a julgamento
Ao julgar, ouça
Ao condenar, estenda a mão
O segredo da verdadeira justiça
Está no ouvido que ouve
E na mão que ajuda
E não na boca que acusa
Ou na mão que castiga

Bora'ndar

O tempo e a distância
Infinitos no conceito
Assustadores na ideia
Doídos na carne
Não botam medo
Nem são significantes
Pra quem gosta de andar
E não tem pressa de chegar
Vámonos caminantes
Bora'ndar

Termpo de flor/é/ser

Fulô, se flor é pra ser
Há/veremos (de) flo/rir
A flor/essência de nós mesmos
Num flor/é/ser
Flor/a do tempo
Des/flora o que é espinho
E flores/sendo a passo lento
Pé/tala ante pé/tala
Em/flora o novo amanhã/ser

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A volta

Voltar é dar uma volta
É a volta em ação
Quando se fecha o ciclo
E se completa o círculo
Encontra-se novamente no início
Porém depois de tê-lo todo percorrido
A volta é aquilo que faz o mundo
Que faz a lua e os astros
Dia após dia
É aquilo que faz a vida
Quando menos se espera
Que em voltas se revira
A volta é aquilo que fazem os humanos
Quando sentem saudades
Quando estão arrependidos
Ou quando perdem a trilha

Para dar uma volta
É preciso aparar as arestas
Livrar-se dos cantos
Até o ponto de se fazer círculo
Circunferência
Como um torrão de argila
Nas mãos do escultor
Se transforma em vaso
Rodopiando livre
Em seu próprio eixo

Se a volta é como um começo
Seria como se nunca houvesse ido
Se não fosse partindo
Que se chega novamente ao início
Exatamente por isso a vida é uma re-volta
Porque sempre nos oferece um re-começo
Ela gira, e redemoinha, e rodopia
Sem início, nem fim, nem meio
É como a roda de uma ciranda
Você entra onde quiser
Pisa com os pés onde todos pisaram
E gira junto, no mesmo sentido
Todos nós vamos um dia
Mas sempre voltamos num outro
E revoltamos
E recomeçamos
De novo
E de novo

Dialética

O caminho não é único
São muitos
Todos ao mesmo tempo
Não há uma só direção
Ela ponta para vários lados
A verdade não está nos extremos
Na oposição
Mas em algum lugar do meio
Virado e revirado do avesso
A dialética é o consenso
Que nasce do conflito
Não vejo os humanos praticarem-na
Em verdade, não podem ser-lhe fiéis
Mas ela dá um jeito
De imprimir a sua marca sobre tudo
É errando que a gente se acerta
É tropeçando que a gente sintoniza o passo

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Poesia das trabalhadoras que fabricaram o meu celular

Então eu me posiciono à linha de produção
Como se fosse à cabeceira do leito de morte de minha mãe
Sem alento, com profundo pesar
Antes da sirene dar o sinal da partida da máquina
Um suspiro fundo prepara a mente ao que virá pelas próximas horas
Quase todo o meu dia, esvai-se junto ao movimento inexorável da esteira
A uma taxa de n peças por minuto
E o que é um dia senão um grão de areia na ampulheta?
Que aos poucos eu preenchê-la-ei por inteira
Das promessas e sonhos de menina, já quase nada resta
Soterradas pela areia que desce aparentemente sem pressa
E então eu me lembro que ainda sou uma menina
Mas uma menina sem sonhos e promessas é uma velha
Miserável, morta, estúpida, como uma máquina
Uma máquina não possui sonhos nem faz promessas
Se ela se move é porque lhe dão energia elétrica
Já eu me movo porque me dão dinheiro
Eis aí a única diferença
A esteira inicia seu trajeto circular
Começando por mim, dá uma volta toda pela fábrica
Até que retorna a mim de novo
Ou começa na trabalhadora ao meu lado?
Isso não importa nem muda em nada as coisas
Eu não sei o que há para além desta breve seção que ocupo
Meu corpo físico inicia seu movimento sozinho
Como se obedecesse ao mesmo comando da máquina
Como se eu tivesse uma espécie de botão também
Meus olhos agitados seguem o balé das mercadorias
Minhas mãos acompanham-nas com agilidade e destreza
Por fora, a aparência de harmonia, força e beleza
Que arranca tantos e orgulhosos suspiros da gerência
Esconde a cenário sombrio, frio e morto que se passa cá dentro
Eu estou longe, viajo em pensamento
Mas não sei para onde ir
Então me espírito paira sobre a linha de produção
É quase como se eu me visse a partir de fora
Olho aquelas mãos que apertam pequenos e delicados parafusos
E é como se não fossem minhas
É como se tudo ao meu redor estivesse acontecendo noutro lugar e tempo
E então eu volto os olhos da alma por sobre as paredes da fábrica sem janela
Por sobre a minúscula cela onde vivo com outras nove companheiras
Por sobre os prédios, e para além da agitação frenética da cidade poluída
Voo sobre os vales, as padrarias, as montanhas
E vou dar de novo na infância de pé descalço
Ajudando meus pais no roçado
Correndo atrás das galinhas quando a vida me permitia ser criança
A fábrica à minha frente torna-se um pesadelo distante
Eu repouso minha cabeça sobre o colo da minha mãe
Enfim, fechos os olhos e descanso
Como há muito tempo não descansava

O grande mistério

A verdade é que o mundo é muito
Muito pequeno para os nossos sonhos
A realidade é sórdida e mesquinha
O que fazemos uns aos outros é ultrajante
Mas existe um “mas”, existe um “a despeito disso tudo”
E é aí que reside o segredo do universo que cada um de nós carrega na alma
Em constante rota de colisão uns com os outros
Chispando em big bangs ou se extinguindo em buracos negros
O segredo é a tenacidade da capacidade de sonhar e amar embora quase tudo o que vemos
Sentimos e fazemos seja contrário a essa capacidade
Permanece sempre queimando a chama daquilo que faz de nós humanos
É preciso procurar com muito afinco para encontrar um ato bondoso
Uma história inspiradora, um acontecimento mágico
E a despeito disso, um único ato-história-mágico desses
É capaz de restituir a fé soterrada por décadas
Abaixo de camadas e mais camadas de frustrações e erros
Um amontoado recoberto por uma fina e inquebrantável película de medo e culpa
Uma vida inteira, e dá para contar nos dedos das mãos o que dela fora bom
E inacreditavelmente nós continuamos, impávidos
Para no final, ao arrostar a face pálida e gélida da morte
Termos uma frágil tábua à qual se apegar
E enfrentar a travessia eterna que se inicia depois
Eu só queria entender essa coisa ininteligível
O porquê de tantos sonhos pacíficos se extraviarem
Confusos, nessa tempestade de misérias
E, o que é ainda mais notável
O porquê de permanecermos fieis a eles
Como é possível que façamos tantas coisas belas
Quando tudo o que criamos é grotesco?

domingo, 20 de julho de 2014

Mensagem na garrafa

Esta é uma mensagem do passado
Para as pessoas do futuro
É um pedido, para que não façam como nós
Que desperdiçamos nossa juventude
Com coisas fúteis
Sonhando com coisas grandes
Nós, que gastamos nossa beleza
E ficamos velhos e amargos antes da hora
Nós, que deixamos a felicidade para depois
E esquecemos de viver a grande aventura
Que é a vida
Essa é uma mensagem de nós que tivemos quase tudo
Mas que hoje só gostaríamos de outra chance
Nós, que voltaríamos no tempo
Pelas coisas mais simples
Por aquele abraço que não demos
Pelas palavras que nunca dissemos
Pelo amor que não vivemos
Essa é uma mensagem do futuro
Escuta com atenção
Se você a ouve
Ainda há tempo
Essa é uma mensagem do futuro
Para o passado que não tivemos

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Da poesia, só sei da minha

Se me entristeço
Ou se só me sinto
Eu digo
Sem rodeios
Se me indigno
Se sinto ódio
Eu grito
Me revolto
Levanto o punho
Rijo, para cima
É assim minha poesia
Falo de sentimento
Falo do humano
Alegorizo minha vivência
Represento o mundo
Pleno de beleza e violência
Canto a vida
Eis aí minha poesia
Nela não encontrarás
Verdades absolutas
O hino do futuro
O sentido do caminho
Não ofereço respostas
Nem perguntas
Isso é irracionalismo?
Recuso rótulos
Apenas abro o peito
Ofereço minha alma
Traduzo o que vejo
Escrevo o que crio
E fantasio
Sem fé nas certezas
Sem temor das dúvidas
Sem aspiração
Sem premissas
Não é poesia revolucionária
Não perfila um lado
Não busca o essencial
A ideia universal
É efêmera
Contingencial
É apenas um olhar
De uma alma
Entre sete bilhões de outras
Que verte em palavras
Sai do corpo
E encontra o papel
Virtual
E se tu a lês
É porque a tecnologia de hoje
Possibilita
Não fosse isso
Estaria mofando numa gaveta
Esquecida
Na areia do tempo soterrada
Do jeito que tem de ser
Se tu não entendes
Não há nada para entender
Mas se algum valor há nela
Então, me diz você

Olha a hora

Apita o apito
Desperta
Olha a hora
Engole o grito
Olha o relógio
Olha a ciranda
Olha a gira
Gira-gira do ponteiro
Rápido, se apressa
Não embroma
Corre não anda
Atrás do tempo
Todo ano o ano inteiro
Da hora
Eu quero ver quem é que ganha
Ocupa-te, vai
Que o dia avança
E de minuto em minuto
Num segundo
Outra hora se esvai
Olha o tempo
Olha o relógio
Olha a vida da janela
Olha o mundo do escritório
Consulta agenda
Cumpre tarefa
Bate meta
Bate cartão
De tanta pressa
Bate as botas
De infarto do coração
Enfim descansas
Na cabeceira
Do caixão
Já vais tarde
Das férias que não gozaste
Goza agora pra toda eternidade

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Palestina

Numa tripa de terra
Seca e árida, conflagrada
Quase do mapa apagada
Homens e mulheres
Acossadas e humilhadas
Se apinham
A mercê de Golias
Neste sitiado rincão
Ninguém entra ou sai
Por terra, mar ou ar
Dos nazistas
Lembra os guetos
Campos de concentração
Rafah é Varsóvia
Quem diria, os israelitas
Ontem vítimas
Hoje verdugos
A história e sua trágica ironia
Falam de terroristas
Mas só vejo famílias
Pessoas normais
Crianças mutiladas
Pais sem suas filhas
E filhas sem seus pais
É um holocausto
Que fingimos não ver
E nada saber
Dizem que nessa terra antiga
Sempre houve conflito
E sempre vai haver
Mas não vejo guerra
Vejo só genocídio
E covardia
Com a cumplicidade habitual
Das potências imperialistas
E de nossa omissão moral
Eu queria que essa poesia
Atravessasse os mares
E chegasse à Palestina
Que fosse como um grito
Ecoando mais alto
Que as bombas sionistas

quinta-feira, 10 de julho de 2014

(In)Definição

O conceito
É um traço
Circunscrevendo
Um espaço;
Uma linha
Contendo
Um conteúdo;
Um conjunto
Delimitando
Pertença
E não-pertença;
Tanto faz se
Circunferência
Ou se quadrado;
Sem traço
Sem laço
Desfaz a forma
Liberta o espaço
Mistura o conteúdo
E eu vazo
E me espalho
Em movimento
Pelo vazio
Do mundo

Vômito

Como ser feliz neste mundo?
Se para buscar a felicidade
Deve-se marchar
Marche soldado,
Marche sem olhar para baixo!
Para ser um feliz solitário
É preciso dizer:
Foda-se todo o resto!
Pisar em cabeças, atolar-se em sangue
Comer merda e agradecer
Pela oportunidade
Para todo lado que eu olho
Vejo injustiça, covardia, crime
Quando virá o castigo?
Para o tédio, a pobreza de espírito
As preocupações mesquinhas do filisteu
Confortável em sua ignorância
Eu sinto náusea
Que me fermenta as entranhas
Náusea o suficiente para vomitar
Para vomitar por anos a fio
Vomitar até afogar esse mundo
Lavá-lo em vômito
Como Deus no dilúvio
A lágrima
Só se for de ódio
O grito
Será de revolta
E não haverá volta
Nem perdão

Como antigamente

Eu queria poder chorar
Como eu chorava
Antigamente
Ter a fé que costumava
Inocentemente, sustentar
Quando tudo era novo
E podia errar-se à vontade
Porque era a primeira vez
E porque haveria outras
Agora o que resta são lembranças
Arrependimentos e não esperanças
Que me vergam os ombros
E secam-me as lágrimas
Chega sempre o ponto
Onde se abre mão da felicidade
E se deixa arrastar pelos acontecimentos
Porque se está muito velho e machucado
Pra tentar novamente
E porque se está ainda muito moço
Pra desistir definitivamente
Tudo o que eu queria era chorar
Como eu chorava
Antigamente

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Ser meio surdo

De início, deixemos as coisas bem claras: ser meio surdo não é igual a ser inteiramente surdo, de modo que eu agradeço pela minha meia surdez. Ser meio surdo é mais ou menos como, guardada as devidas diferenças, ser míope (o que eu também sou, diga-se de passagem): tem consequências ruins, mas que também não são tão ruins assim. É preciso saber conviver com a meia surdez.

Escutar uma piada por exemplo é um problema. Enquanto todos estão rindo às gargalhadas, você faz aquela cara de quem chegou no meio da conversa, embora esteja desde o primeiro “então, tinha um...”, porque não escutou justamente o trecho chave para a compreensão da piada.

Falar com uma atendente de telemarketing de call center é outra grande dificuldade. Você nunca entende exatamente o nome da pessoa, se é Josileine ou Josicreide, Cristiane ou Gislaine, Vanderson ou Vanildo, obrigando você a escolher um nome à revelia e se despedir do Joilson chamando-o de Jair. 

Dar aula pode ser uma das piores experiências para um meio surdo. Se fosse o caso de que todos os alunos perguntassem de uma vez, você poderia até ficar feliz. Mas na maioria das vezes o problema da meia surdez em sala é que é impossível ouvir a pergunta de uma ou duas meninas estudiosas enquanto o resto dos trinta e oito demônios fazem a terceira guerra mundial na sala.

Mas nada é mais embaraçoso do que tentar flertar numa casa noturna badalada ao som de um DJ ou banda de rock. Você não vai entender nada e vai ficar com aquela cara de bobo variando os meneios de cabeça entre sim e não junto com um indecifrável “ahan” de tempos em tempos. Essa é a maior causa de insegurança entre os meio surdos, situação que exige deles habilidades de leitura labial, filologia e um pouco de vidência.

Por isso, quando você, que tem a audição perfeita, se deparar com um meio surdo na balada e achar que vale a pena dar uns amassos, faça um favor para vocês dois, corta a papo e vai direto ao beijo.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Meu jardim

Meu jardim tem hibiscos
Onde beija o beija-flor
No jardim dos vizinhos
Ele não beija com tanto amor

Vaia e pobreza sociológica

Quem vaiou a presidente Dilma na abertura da Copa? Essa é uma pergunta enganosa, porque supõe que se conhecermos a origem social dos vaiadores saberemos como pensam e agem como um todo a “classe” a qual pertencem. Essa generalização, porém, não é tão perigosa quanto a raciocínio oposto, o qual é muito mais comum: assim, os marxistas deduzem o comportamento das pessoas de determinada classe com base na ideia que fazem do comportamento das pessoas desta classe. Temos aí um raciocínio circular, tautológico. Nesse sentido, ao constatar que o público do estádio estava composto em sua esmagadora maioria por pessoas de relativamente elevada renda (o que já é suficiente para que eles concluam que se trata da burguesia e/ou pequena burguesia), e ao constatar seu comportamento, dizem: aí está, a burguesia é conservadora, reacionária, como havíamos predito. Vê-se logo a inconsistência desse raciocínio: a realidade é estereotipada para que caiba nos limites dos preconceitos de quem a estereotipa e, uma vez que a realidade, assim estereotipada, efetivamente cabe dentro do estereótipo, isso é a comprovação de que o estereótipo é empiricamente correto. O estereótipo em questão, o comportamento relacionado às classes, é explicado com base num reducionismo grosseiro: como as classes são construídas, conceitualmente, em relação à sua posição na estrutura econômica, o comportamento de seus membros é derivado dessa posição e, portanto, dos interesses materiais que ela implica. Para explicar as variações de comportamento entre os membros de uma classe, os marxistas subdividem arbitrariamente as classes em frações de classe, relacionando cada uma delas a determinado comportamento (assim a pequena burguesia é associada ao comportamento mais conservador ou mesmo reacionário por causa da sua posição na estrutura econômica). Deste modo, preservam a suposição inicial segundo a qual os interesses materiais das classes explicam seu comportamento coletivo. A verdade é que o conceito de classe, muito útil para muitas coisas, não é tão útil quando se quer compreender valores, atitudes, comportamentos, crenças, hábitos, etc., a não ser de um ponto de vista muito genérico e abstrato. Tendo em mente que o público do estádio era composto por pessoas com relativo poder aquisitivo, sabemos que, em termos de classe, ele compunha-se, grosso modo, da classe média para cima. Vaiar a presidente Dilma, petista, vista como de esquerda, ex-guerrilheira, parece um comportamento previsível da parte dessa camada social, ainda mais sabendo que a maior parte da sua base eleitoral vem das camadas de menor renda, especialmente as localizadas no nordeste do país. Entretanto, daí derivar um comportamento típico de uma determinada classe ou fração de classe é um salto mortal que diz mais sobre a ideologia de quem julga do que da própria coisa julgada. Eu tenderia a explicar esse comportamento com base nos preconceitos profundamente arraigados nas “velhas elites”, isto é, aquelas que conquistaram e se mantiveram no poder político, econômico e cultural antes dos governos petistas e, por isso, não mantêm com ele nenhuma dependência sentimental ou simbólica e cuja visão de mundo exerce enorme peso na produção de discursos. Para elas, o PT sempre vai ser um “outsider”, por mais que ele sirva aos seus interesses econômicos, e sempre vai encarnar tudo aquilo que elas repudiam: os trabalhadores, os nordestinos, os cidadãos comuns, a esquerda. As “novas elites”, do tipo Eike Batista, embora mantenham uma ligação mais orgânica com o PT, não deixam de manter uma relação ambígua com ele. Em segundo lugar, é preciso olhar para o contexto sociopolítico de radicalização e crise de legitimidade política, o que facilita de alguma maneira vaiar uma presidente num evento público como a abertura da Copa. Eu examinaria, em terceiro lugar, até mesmo os efeitos psicológicos decorrentes de manifestações coletivas de massa, potencializados num ambiente como um estádio de futebol. Enfim, há muitos fatores para os quais olhar, e a classe social é apenas um deles, quiçá nem o mais importante.

Carpe diem

The life
Is a ride
Enjoy yourself
Because it pass
Really fast
In a blink
Of eyes

Qual cachorro

Eu sou parecido
Com um cachorro
Só funciono
Sob a ameaça
De um castigo
Ou sob a promessa
De uma recompensa
Se você me arreda
Abaixo o nariz
Meto o rabo
Entre as pernas
E volto
Achando que algo eu fiz
Para merecer isso

Os primeiros ais

Como doem
Os primeiros ais
Do coração
Como coçam e inflamam
Os primeiros sinais
De uma paixão
Incuráveis
Jamais cicatrizam
Nem nunca desaparecerão
Ainda que durem o tempo
Duma canção
De antigos carnavais
Gravados a ferro e fogo
Como memoriais
Sob o relicário do coração
Serão sempre virginais
Lembranças dum tempo bom
Quando os ais
Não eram de fome nem de solidão
Mas de paz e afeição
Da ilusão doce
Que é a primeira paixão

Buscar a verdade

A busca da verdade
Na verdade não está
Está tão-somente na busca
No ato em si de buscar
E não encontrá-la
A sabedoria consiste
Precisamente nisto
Em saber que verdade não há
E satisfazer-se com isso
Com o simples prazer de buscar

Saudade (mais um pouco de)

Quanta saudade do que já passei
De todos e de tudo um pouco
Saudade do passado e do futuro
E do que nem dizer eu sei

Muita saudade do que eu fui
Das coisas que nem conheço
Saudade de todo um mundo
E dos lugares que nunca verei

Sobra saudade disso e daquilo
Dos amores que nunca terei
Saudade da família e dos amigos
E das bocas que experimentei

Saudade da infância de menino
Das experiências com que ainda presentear-me-ei
Saudade do que era triste e belo
E das confissões que quem sabe um dia farei

Saudade daquele nosso momento
E dos fatos que esquecerei
Saudade do que poderia ter sido doutro jeito
Pois jamais saberei

Da vida que vivi e vivê-la ainda hei
Fica a saudade guardada no peito
Não há espaço pra arrependimento
Só saudade, doce saudade, sentirei

Meu partido

Não é contra
Quase nada
Exceto certezas
Muito certas
Verdades
Muito verdadeiras
Não tem bandeiras
Nem programa
Defende pouca coisa
Dúvidas
Questionamentos
Perguntas
Ao invés de respostas
Prescinde de carteirinha
Ou assembleias
Não tem maioria
Nem direção
É só fazer o quer vier à veneta
Pois há de ser tudo da lei
Nossa única máxima
Meu partido não é sério
Tampouco a salvação
É utopia sem revolução
Não faz política
Nem usa a razão
Faz arte, bagunça e confusão

Um síntese entre Benjamin e Raul

Se não for um crime
Permitam-me substituir a metáfora benjaminiana
Demasiado classicista e dramática
Para o gosto contemporâneo
Por uma mais simplória e despretensiosa
Ao estilo raulzito
A história é uma charrete velha
Dessas que recolhem “recicráveis”
Ataviada com acessórios automobilísticos esportivos
Calota Audi, spoilers, vidro fumê
De modo que quem de frente a vê
Cuida tratar-se de carro importado
Modelo último tipo, tope de linha
Mas depois que ela passa
Espanta o estado miserável em que se encontra
Madeira podre sob sucessivas demãos de tinta desbotada
Estrutura enferrujada
Sustentada por arrimos improvisados
A charrete vem puxada por um burrico
Fantasiado de alazão branco
A crina é de aplique e o casco tem salto
Para que pareça mais imponente e alto
Mas o andar e o porte, abatido
Sem brio, desasado, abobado
Não enganam
Acontece, no entanto
Que a charrete ainda não perdeu o condutor
O infeliz se veste em traje de gala
Exibe galardões militares recobertos de sangue
E se porta como se trouxesse a Madona no passageiro
Às suas costas, o bagageiro abarrota-se de lixo
De todo tipo de porcaria que ele passa recolhendo
Enquanto olha para o chão
Ignora que se dirige a um beco sem saída e estreito
O burrico vai porque acostumou-se a ir
O condutor não atina para o caminho porque só olha para baixo
Cuida-se importante e distinto, mas é pobre e ignorante
E a história segue com o nome de progresso

Muito prazer

Se faço cara de bobo
É porque sou de fato
Se travo e me calo
É porque sou tímido
E se abro um sorriso
É pela mesma razão
Sou triste, atrapalhado
Perdido e problemático
Desvio o olhar no chão
Evito pessoas e fujo
Nunca sei o que dizer
E ainda sou míope
E um pouco surdo
Isso é tudo que tens que saber
Eis o manual do João
Do Jão-Sem-Jeito
Veja quão é simples
Não tem segredo
Tirando os defeitos
O resto é só coração
Também quero ser feliz
Igualzinho a todo o mundo

Remédios e teorias

Esse sentimento
De me dissolver
De me diluir no mundo
De com ele tornar-me um só ser
De estar com todos
E tudo fazer
A um só tempo
Esse sentimento
Que grita dentro do peito
Que força e quer sair a todo custo
Como uma explosão
A psicologia diz que é ansiedade
E dependendo da intensidade
Ministra sedação química
Porque sentir demais faz mal à psique
Já a sociologia
Diz que ele é uma anomia
Uma condição da pós-modernidade
Fragmentada, líquida
Eu digo que é amor
Que é um bem-querer intraduzível
Absoluto e impossível pela humanidade
Pela natureza e pela vida
Não me deem remédios
Não me expliquem teorias
Deixem-me senti-lo
E escrever poesias

Há sempre uma primeira vez

Beije
As bocas
Que por aí encontrardes
Como se fosse a primeira
Os lábios
Você morda com a fome
De quem come e nunca se sacia
As mãos
Segure bem firme
Como se sumisse o chão sob os pés
Os sexos
Explore como um viajante
Em mata virgem e bravia
Aproveite
Porque cada vez
É como se fosse a primeira
Única e sem volta
Antes que acabe
E era uma vez...
Para a vida inteira

Das notas

Quem se sente SOL
E perdeu a RÉ
Não sinta DÓ de SI
FÁ como MI
Vê LÁ um violão
Que SUSTENIDO canto
Faz BEMOL ao coração

O homem do saco

O pequeno Luca era ainda um neófito neste mundo. Era esperto, mas seus cinco anos de idade não lhe conferiam grande experiência para que pudesse discernir e compreender fatos básicos da vida e dos seres humanos. Por exemplo: porque aquele senhor passa seus dias sentado naquela calçada, uma das mãos estendidas e voltadas para cima, olhar suplicante, balbuciando coisas indiferentes para os passantes indiferentes? Porque, quando cai a noite, ele não volta para casa? Porque deita-se debaixo daquela marquise e, sobre papelão imundo, dorme, envolto em trapos? Não terá mãe? Será que ela ralhou com ele, como a minha ralha comigo, fazendo-o fugir de casa?

Entre as frinchas do portão do condomínio, Luca podia vê-lo, a algumas dezenas de metros de sua casa. Às vezes, perdia horas a observá-lo. Sabia que ele dormia ali porque, numa madrugada, saíra escondido do apartamento e descera até o portão para ter certeza. Quando saia para ir à escolinha, o carro passava rente ao homem mendicante, e Luca colava o rosto à janela para analisa-lo melhor. Isso era o mais perto que podia chegar. Inquiriu o pai sobre quem era aquele homem e o que ele fazia ali. A resposta que recebeu não aliviou-lhe em nada tantas perguntas cruéis, tantos mistérios:

– É só um vagabundo, filho. Não tem trabalho e, por isso, não tem onde morar.

E por que não tem trabalho? E o que o trabalho tem a ver com ter onde morar? E, afinal de contas, o que seria um vagabundo? Não somente não obteve resposta inteligível, como as perguntas se multiplicavam. Recorreu à mãe.

– Ele está nessa condição porque não estudou, querido. É por isso que você tem que estudar, pra ser alguém na vida.

Deu nelas por elas. Tudo isso não fazia o menor sentido para o pequeno Luca.

Um dia ouviu uma história estranha e assustadora sobre um tal “homem do saco” que sequestrava as criancinhas que não se comportavam. Lembrou-se do vagabundo-sem-trabalho-e-sem-estudo, como definira-o seus pais, que vira e mexe trazia e levava um saco grande e preto nas costas. Perguntou à tia como se parecia o homem do saco, e a reposta deixou-o atônito. A semelhança era tamanha que perguntou-se se não poderia ser ele, então, esse homem malvado a carregar criancinhas desobedientes no saco preto.

Certa noite o condomínio acordou em polvorosa no meio da madrugada. Choro, gritaria e um corre-corre de um lado pro outro. Luca sumira. Seu pai dava de dedo na cara do porteiro, acusando-o de negligência com suas obrigações, enquanto a mão, catatônica, era acudida por uma vizinha no hall do prédio. Uma voz lúcida atravessou a agitação com a razoável hipótese de que aquilo não passava de uma travessura de criança. Montou-se assim uma força tarefa de busca.

Reviraram o prédio de cima a baixo e nada encontraram. Ganharam a rua, e mal deram uns passos avistaram o menino ao lado do homem esfarrapado e sujo. Correram em direção a ele, com ódio nas ventas e prontos para linchá-lo, mas estacaram a alguns passos. Luca dormia tranquilamente e o homem nem parecia dar-se conta da sua presença. Em volta deles, Luca desenhara com um giz-de-cera colorido os contornos de uma casa, com direito até a chaminé e um sol radiante e sorridente.

Casa do Pai-Jão

Rede e violão
Muito café e chimarrão
Livros e textos pelo chão
Filmes e nada de televisão
Cosidos e assados no fogão
Mousse e doce de mamão
Vinho caubernet sauvignon
E música nas caixas de som
Yoga e meditação
Paz, amor e união

sexta-feira, 6 de junho de 2014

O vento (II)

Quanta saudade do que já passei
De todos e de tudo um pouco
Saudade do passado e do futuro
E do que nem dizer eu sei

Muita saudade do que eu fui
Das coisas que nem conheço
Saudade de todo um mundo
E dos lugares que nunca verei

Sobra saudade disso e daquilo
Dos amores que nunca terei
Saudade de fulana e de ciclano
E das pessoas que um dia beijei

Saudade daquele nosso momento
E dos fatos que esquecerei
Saudade porque poderia ter sido doutro jeito
Jamais saberei

Da vida que vivi e vivê-la ainda hei
Fica a saudade guardada no peito
Não há espaço pra arrependimento
Só saudade, doce saudade, sentirei

Saudade

Quanta saudade do que já passei
De todos e de tudo um pouco
Saudade do passado e do futuro
E do que nem dizer eu sei

Muita saudade do que eu fui
Das coisas que nem conheço
Saudade de todo um mundo
E dos lugares que nunca verei

Sobra saudade disso e daquilo
Dos amores que nunca terei
Saudade de fulana e de ciclano
E das pessoas que um dia beijei

Saudade daquele nosso momento
E dos fatos que esquecerei
Saudade porque poderia ter sido doutro jeito
Jamais saberei

Da vida que vivi e vivê-la ainda hei
Fica a saudade guardada no peito
Não há espaço pra arrependimento
Só saudade, doce saudade, sentirei

Beija-flor

O beija-flor só namora
É delicado e esbelto
Como um hibisco
Mas quando abre o bico
Cruz credo, que coisa horrorosa!
Canta, não, seu beija-flor
Que sua voz é feia e rouca
Só beija, com amor
A minha boca

Escolha

Dói fundo no coração
A condição humana
Ter que fazer escolhas
Como se as pessoas
Fossem itens num cardápio
Oferecidas como opção
Quando cada uma delas
É especial e única
Me envergonha
Colocá-las numa escala
De valor e importância
Quando todas elas
São iguais por direito
Completas e plenas
E o medo, a angústia
De magoar quem se ama
De tratar as pessoas como meio
De usá-las
Com que direito?
Esse medo me consome
De ser egoísta
E não ser de fato livre
Porque a liberdade
Tem de confundir-se
Com egoísmo?
Isso é injustiça!
Eu não posso querer apenas uma
Quero a humanidade toda
Como quero a mim mesmo
Como isso pode ser bom e ruim
Ao mesmo tempo?
Viver é escolher
É dizer: você eu quero
Mas não você
E como fazer
Para não magoar ninguém?
Acho que o problema é esse espaço
Que no coração eu trago
Grande demais só pra mim
E, nesta viagem
O amor das pessoas
É a bagagem
Que eu levo no caminho
Para não magoá-las
Só há um jeito
O segredo
É deixa-las passar
Como um passarinho

Quarta-feira

Eu sou assim
De cinzas
Pobre de mim
Cuja vida inteira
É uma quarta-feira
Sem fim

Meu violão

Se para os males do coração
Não existe nenhuma cura
Ao menos conforto há
E eu o encontro no som
Da palavra cantada
Que suave embala
Os acordes de meu violão

Viva a música!
Poesia em forma de canção
Viva a banda
Que toca velhos sambas
Em acordes menores
Neste dissonante coração

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Inteligência e sabedoria

Inteligência não é dom
Nem é capacidade
Tampouco está ligada ao cálculo
Ou ao raciocínio lógico
A inteligência é uma disposição
De questionar insistente e incansavelmente
Suas verdades mais sagradas
Há tantos inteligentes estúpidos
Quanto sábios de inteligência curta
Isso porque uma pessoa inteligente
Não é aquela que tem bons argumentos
Antes é aquela que não tem certezas
Aquela que sabe ouvir
E procura entender
Ao invés de julgar
Ou seja, inteligência não é QI
É pensar e agir sem preconceitos
Inteligência não é essencial
Essencial é a sabedoria

sexta-feira, 28 de março de 2014

Ode aos enjeitados

Você fala ninguém ouve
Você existe e ninguém vê
Você ri e ninguém compartilha
Se você parte, ninguém liga
Se você fica, ninguém festeja
Você pede, mas ninguém dá
Você chora, ninguém se importa

Mas se você se cala, fazem troça
Espicaçam e zombam
Não deixam que sejas o que tu és
Pior pra eles, que têm carisma
Vaidade, orgulho, admiração
Mas a sensibilidade d’um bloco de granito
Não veem a beleza que tens
Jamais saberão das qualidades
(lealdade, compaixão, coragem)
Que se escondem sob tua falta de jeito
Tua timidez
Tua pouca autoestima

Não me interessam os fortes
Os belos, os melhores
Os desejados, os reputados

Os fracos, os feios
Os bobos, os pobres
Os ignorados, os enjeitados
Esses sim me interessam

O mundo

Os machões acham que o mundo
Pertence a quem tem pênis
Os valentões a quem tem bíceps
Os poderosos a quem tem dinheiro
Acham que o mundo tem de ser currado
Agredido ou comprado
Mas o mundo não tem consideração
Pelos seus preconceitos machistas
Pseudo-naturalistas ou capitalistas
Porque o mundo é um bem
Que não pertence a ninguém
Não pode ser comprado
Nem possuído, nem dominado
O mundo é de todos
É de quem souber amá-lo
Assim como meu coração também

Créditos

- Essas poesias são suas?
- Minhas, não.
- Foram escritas por quem, então?
- Por mim.
- Ora, então são suas.
- Não. Um poema não pode ser de ninguém. E eu gosto de pensar que sou apenas um coautor, e nem sempre o mais importante deles.
- Blá!
- Essas poesias carregam um pouquinho de cada pessoa que cruzou o meu caminho; foram escritas a milhares de mãos.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Conselho

Traga na imaginação,
Ideias generosas e criativas
No coração,
Amor de sobra pela vida
No movimento,
Graça, equilíbrio e força física
E como princípio
Aceite e busque a mudança
Sê plástico, sê sábio
A todo tempo,
Se recrie, se refaça
Novo e pleno
Vivendo e lutando com garra
Humildade e respeito

Ser solitário

Se solitário és
Solitário serás
Ser solitário
Não é só estar
Basta ser
Para ser tão só

domingo, 23 de março de 2014

Alívio

É o peito opresso
Sôfrego, enfermo
Que volta a respirar

É a festa dos pássaros
Após a chuva a chilrear

É o desabrochar das flores
Depois de inverno rigoroso

É o retorno ao lar
Após exílio longo e doloroso

É a criança que brinca
Extasiada com o brinquedo novo

É a tempestade que finda
Deixando em paz os vivos

É o amor que começa
Inocente, cheio de ilusões e promessas

É a ansiedade e angústia
Que dão lugar ao sentir-se pleno, repleto

É a trégua da dor e da fadiga
O repouso, o descanso, o consolo

Soneto de agradecimento

Meu coração enternecido
É todo ele agradecimento
Porque sorte maior na vida
Não tive nem podia ter tido

Mesmo sem merecimento
Regalaram-me com alegrias
Sejam amigos de momento
Ou os que chamo de família

Quantos sinceros sorrisos!
Quantos colos concedidos!
Quantos bons momentos
Que trago na lembrança

E eu sou só agradecimento
Pelos dedinhos de prosa
Ou de carinho na pele nua

Agradeço quem rio comigo
E quem derramou sua mágoa
No meu ombro de amigo

sexta-feira, 21 de março de 2014

Faroeste amigo

O sorriso é uma arma
Muito perigosa
De celebração em massa
Eu, leviano, inconsequente
Saio disparando-a a torto e direito
Bang! Bang! Bang!
Mais um tiro certeiro
No coração de alguém
Tenho muita munição no pente
Tem gente que cai imediatamente fulminada
Outras resistem
Usam coletes a prova de bala
Mas já que a melhor defesa é o ataque
Eu nem espero saber a intenção
Se é amigo ou inimigo
Vou logo desarmando com um sorriso
Mexeu comigo leva tiro
Neste faroeste de rostos tristes
Consta que eu sou o mais rápido gatilho
Capaz de abrir o mais largo sorriso
Antes que você consiga dizer:
Oi, prazer em conhecê-lo
Por isso, você que sente raiva
Inveja, rancor, desamor
O xerife recomenda cuidado
Porque Kid Smile está a solta
A espreita de uma nova vítima
Tem até um cartaz oferecendo recompensa
Pela minha captura
Mas jamais hão de me pegar vivo!
Dizem que eu sou um perigo
À decência e sobriedade da boa sociedade
Mas eu nada posso fazer
A vida me fez assim, bandido
Fora da lei, cangaceiro
Hei de disparar sorrisos
Roubar gargalhadas
E sequestrar corações
Até quando um gatilho mais ligeiro
Me derrubar em pleno tiroteio

Meus votos

Para os sem voz
Eu tenho ouvidos
Para os fracos e oprimidos
Eu tenho ombros
Aos que não têm abrigo
Eu dou acolhimento
Aos que são sozinhos
Eu faço companhia
Aos pobres de espírito
Eu ofereço compreensão
Aos desassistidos
Eu tenho tempo
E atenção
Aos que têm fome
Eu divido meu pão
Aos que têm sede
De justiça
Eu tenho sangue
E coração
Aos que sofrem
Eu dou conforto
E se eles mesmo assim riem
Eu rio junto
É nos desesperançosos
Que eu tenho fé
Aos que nada mais têm
Senão seus braços
Eu dou os meus
Num abraço
Em corrente
Esses são os meus votos
De punho em riste

Compreensão

O que para alguns é defeito
Pode ser qualidade para outros
O que para alguns é feio
Para outros, é belo
Será que você consegue
Ver através destes olhos
Desta pele, deste rosto
A paixão fulgurante que arde
No fundo do meu peito?
Ser assim, tão diferente
Deveria ser razão para ter medo?
Para se sentir tão só e carente
Você sabe, como no conto do patinho feio
E quem não quer ser aceito?
Ser gente como a gente
Mais do que respeito
Assim como você
Eu busco compreensão

Homenagem a Floripa (Primeira)

Floripa
Com tuas ladeiras e subidas
Teu horizonte recortado por montes
Tuas praias de água verde cristalina
És linda
Ilha que encanta, fascina
De ti dizem, da magia
Do alto dos morros
Tua vista
Tira o fôlego
De quem a visita
E mesmo que em ti há muito viva
Não se perde o espanto
Com tão majestosa beleza
Teus bairros parecem vilas
Uma capital, quem diria!
És, do Brasil, um recanto
Seguro porto
Para quem, como eu
Busca mais amor na vida

terça-feira, 11 de março de 2014

Sociedade do controle

Entre na fila
Pegue uma senha
Aguarde ser chamado
Sorria, você esta sendo filmado
Porta com detector de metais
Colha as impressões digitais
Foto para identificação
Tenha os documentos em mãos
E comprovantes de residência e renda
Anote o protocolo
Assine na linha pontilhada
Cumpra o contrato
Não pise na grama
Portão eletrônico
Cerca elétrica
Câmeras e armas
Não pergunte
Obedeça
As regras
Vigilância
E controle
São para a sua segurança
Li e declaro estar de acordo com os termos de compromisso
Aceitar?

sexta-feira, 7 de março de 2014

A casa

Era uma casa
Mui desgraçada
Não tinha comida
Não tinha nada
Ninguém podia
Matar a sede
Pois água encanada
Não havia ali
Ninguém podia
Fazer cocô
Porque o esgoto
Era no mato
Não era casa
Era um barraco
Mas era feita
De muita fé
E muito esforço

[...]

Resistiu como podia
Durante anos
A enxurrada não a levou
De incêndios criminosos
Escapou
Sua porta remendada
Até coturno da polícia
Aguentou
Enfim foi vencida
Pelo governo
Pela FIFA
Que a puseram abaixo
Deram 30 dias de aviso
Prometeram auxílio moradia
Queriam nos cooptar
No dia fatídico
Não fizemos como Joca
Resistimos
Como em Pinheirinho
Chamaram a tropa
E em meia hora
Os barracos estavam todos no chão
Era uma ordem superior
Foi-nos dito que a nossa maloca
Já saudosa
Vai virar estacionamento
Ou viaduto
Não me lembro
Que ironia seria
Morar debaixo dele
Dizem que o espaço é público
Mas carro aqui tem preferência
E a Copa traz dinheiro
Investimento
Que somos nós, o povo
Os principais beneficiários
É o que dizem
Mas a gente não acredita

Agora não tenho casa
Não tenho nada
Só o que me resta
É a vontade e a força de lutar
Pelo meu/nosso direito de morar
Quando a moradia é um negócio
Ocupar é um dever

O apartamento

Dia longo, cansativo
Suado, sofrido
Chego em casa e o que encontro?
Tudo exatamente igual
A louça por lavar
A mudez dos móveis
A solidão apertada de um apartamento conjugado no centro de São Paulo
O silêncio sepulcral de um espaço habitado por coisas mortas
Antes o barulho frenético das máquinas que me segue diariamente até a porta
Nada aqui tem vida, terá eu?
Eu também sou um objeto, quiçá menos digno do que uma batedeira ou um sofá
Ligo a tevê
Não, a tevê não dá
Desligo-a
Abro um velho álbum de fotografias
Lembranças alegres são tristes
Fecho-o
Vou até a janela
A cidade não para, não dorme
Lá fora me é mais familiar do que cá dentro
Talvez tome uma no boteco da esquina, ou vá ao puteiro
Não, chega de botecos e puteiros
Me assusta esse lugar que supostamente deveria chamar de lar
Lugar que me é estranho, e que me consome meio mês de trabalho
Dinheiro que o senhorio me pede e que não oferece nem bom dia em troca
Que a rua é serventia da casa ele não me deixa esquecer
Me sinto sujo
Quero apenas um banho
Nem sei se tenho fome
Vontade de comer não tenho
Na geladeira apenas água e lasanha congelada
Essa comida me causa engulho
Quero apenas me deitar
Nessa cama vazia
Desarrumada desde a manhã
Ou seria desde ontem ou anteontem?
E que importa?
Abraço o travesseiro
Confiro o despertador do celular
Fecho os olhos ainda de roupa
O tênis eu tiro quando acordar no meio da noite
Penso na morte
Lembro da vida
Chorar pra quê?
Me ocorre, como um presságio, o amanhã
Igualzinho ao hoje
Me abandono, desisto, desmaio, morro
Literalmente

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Entre amor real e irreal

Me disseram que o amor não tem linhas
Ele é tortuoso por natureza
Acho que isso quer dizer que, para o amor
Não há regras, não há ordem
Não é factível um amor organizado
Reto, burocrático, que saiba exatamente o que está fazendo
Ele vem sempre acompanhado de tantos sentimentos
Circunstâncias e tendências contraditórias
Não existe em estado puro
Mas longe de ser irreal
O amor verdadeiro é surreal
Será que se ele fosse real sua beleza se acabaria?
Será que deveríamos colocar o amor numa redoma de vidro
E conservá-lo longe das intempéries e dos nossos erros?
Simplesmente não dá
Ora, não viver o amor por medo de macula-lo já é vivê-lo
Já é fazer um escolha
Possivelmente fonte de arrependimento futuro
O legal do amor é sua comicidade comovente
Ou sua condição trágica
E a gente enche ele de palavras
Afobadas, inconsequentes, ruidosas
Quando na verdade só queríamos ficar calados
Ouvindo o bater de nossos corações
Isso porque somos confusos
E temos medos
E precisamos justificar
E racionalizar tudo
A nós mesmos
Mesmo aquilo que não tem razão nem nunca terá
E por mais que não o entendamos
Às vezes nos basta ouvir aquela voz que lá de dentro grita
Eu amo!

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Sei lá eu

Tá dormindo, caralho?
Acorda, porra!
Onde você vê melhora?
Evolução, progresso?
Cadê essa merda?
A cada ano só piora
A gente caga, senta em cima
E só porque escorrega
Acha que avança
Todo cagado
Este é o mundo que criamos
Cada vez mais lotado
Poluído, violento
Frenético, invivível
Sim, a singularidade catastrófica
Da situação merece um neologismo
Não tem reforma que dê jeito
Nessa estrutura viciada
Pouco, muito pouco
Pode ou merece ser aproveitado
Há que botar tudo abaixo
Consumir com fogo
Começar de novo
Se isso lhe soa como fatalismo
Pra mim soa como um tapa
Na cara do seu pseudo-realismo
Continua aí com o teu sonho
De um capitalismo humanizado
De um socialismo milagroso
Precisaremos ser mais criativos do que isso
Ao invés de escolher um dos lados
Eu escolho o avesso
Ao invés de tomar partido
Eu dou de ombros
O caminho é outro
Vai noutro sentido
Que ninguém sabe qual é
É preciso perder-se para acha-lo
Abrir mão de velhas certas
E a mente para novas ideias
Ousadas, inimagináveis
Sei lá, véio
Tenho certeza de nada, não
Nem das minhas próprias incertezas
Mas às vezes eu acho que tá tudo fodido