sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Praticar a justiça

Quem sou eu para julgar
Onde o outro fraqueja
Onde ele falha ou desiste?
Eu, que, por graça do destino
Tive todas as condições
E oportunidades necessárias
Que sei eu das dificuldades dos outros?
Dos erros e das culpas
Só conheço as minhas
E a despeito de saber disso
Hei de passar a vida toda
Como todas as demais pessoas
A julgar e condenar todo o mundo
É bom, portanto, que
Além de oferecer-me também a julgamento
Ao julgar, ouça
Ao condenar, estenda a mão
O segredo da verdadeira justiça
Está no ouvido que ouve
E na mão que ajuda
E não na boca que acusa
Ou na mão que castiga

Bora'ndar

O tempo e a distância
Infinitos no conceito
Assustadores na ideia
Doídos na carne
Não botam medo
Nem são significantes
Pra quem gosta de andar
E não tem pressa de chegar
Vámonos caminantes
Bora'ndar

Termpo de flor/é/ser

Fulô, se flor é pra ser
Há/veremos (de) flo/rir
A flor/essência de nós mesmos
Num flor/é/ser
Flor/a do tempo
Des/flora o que é espinho
E flores/sendo a passo lento
Pé/tala ante pé/tala
Em/flora o novo amanhã/ser

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A volta

Voltar é dar uma volta
É a volta em ação
Quando se fecha o ciclo
E se completa o círculo
Encontra-se novamente no início
Porém depois de tê-lo todo percorrido
A volta é aquilo que faz o mundo
Que faz a lua e os astros
Dia após dia
É aquilo que faz a vida
Quando menos se espera
Que em voltas se revira
A volta é aquilo que fazem os humanos
Quando sentem saudades
Quando estão arrependidos
Ou quando perdem a trilha

Para dar uma volta
É preciso aparar as arestas
Livrar-se dos cantos
Até o ponto de se fazer círculo
Circunferência
Como um torrão de argila
Nas mãos do escultor
Se transforma em vaso
Rodopiando livre
Em seu próprio eixo

Se a volta é como um começo
Seria como se nunca houvesse ido
Se não fosse partindo
Que se chega novamente ao início
Exatamente por isso a vida é uma re-volta
Porque sempre nos oferece um re-começo
Ela gira, e redemoinha, e rodopia
Sem início, nem fim, nem meio
É como a roda de uma ciranda
Você entra onde quiser
Pisa com os pés onde todos pisaram
E gira junto, no mesmo sentido
Todos nós vamos um dia
Mas sempre voltamos num outro
E revoltamos
E recomeçamos
De novo
E de novo

Dialética

O caminho não é único
São muitos
Todos ao mesmo tempo
Não há uma só direção
Ela ponta para vários lados
A verdade não está nos extremos
Na oposição
Mas em algum lugar do meio
Virado e revirado do avesso
A dialética é o consenso
Que nasce do conflito
Não vejo os humanos praticarem-na
Em verdade, não podem ser-lhe fiéis
Mas ela dá um jeito
De imprimir a sua marca sobre tudo
É errando que a gente se acerta
É tropeçando que a gente sintoniza o passo

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Poesia das trabalhadoras que fabricaram o meu celular

Então eu me posiciono à linha de produção
Como se fosse à cabeceira do leito de morte de minha mãe
Sem alento, com profundo pesar
Antes da sirene dar o sinal da partida da máquina
Um suspiro fundo prepara a mente ao que virá pelas próximas horas
Quase todo o meu dia, esvai-se junto ao movimento inexorável da esteira
A uma taxa de n peças por minuto
E o que é um dia senão um grão de areia na ampulheta?
Que aos poucos eu preenchê-la-ei por inteira
Das promessas e sonhos de menina, já quase nada resta
Soterradas pela areia que desce aparentemente sem pressa
E então eu me lembro que ainda sou uma menina
Mas uma menina sem sonhos e promessas é uma velha
Miserável, morta, estúpida, como uma máquina
Uma máquina não possui sonhos nem faz promessas
Se ela se move é porque lhe dão energia elétrica
Já eu me movo porque me dão dinheiro
Eis aí a única diferença
A esteira inicia seu trajeto circular
Começando por mim, dá uma volta toda pela fábrica
Até que retorna a mim de novo
Ou começa na trabalhadora ao meu lado?
Isso não importa nem muda em nada as coisas
Eu não sei o que há para além desta breve seção que ocupo
Meu corpo físico inicia seu movimento sozinho
Como se obedecesse ao mesmo comando da máquina
Como se eu tivesse uma espécie de botão também
Meus olhos agitados seguem o balé das mercadorias
Minhas mãos acompanham-nas com agilidade e destreza
Por fora, a aparência de harmonia, força e beleza
Que arranca tantos e orgulhosos suspiros da gerência
Esconde a cenário sombrio, frio e morto que se passa cá dentro
Eu estou longe, viajo em pensamento
Mas não sei para onde ir
Então me espírito paira sobre a linha de produção
É quase como se eu me visse a partir de fora
Olho aquelas mãos que apertam pequenos e delicados parafusos
E é como se não fossem minhas
É como se tudo ao meu redor estivesse acontecendo noutro lugar e tempo
E então eu volto os olhos da alma por sobre as paredes da fábrica sem janela
Por sobre a minúscula cela onde vivo com outras nove companheiras
Por sobre os prédios, e para além da agitação frenética da cidade poluída
Voo sobre os vales, as padrarias, as montanhas
E vou dar de novo na infância de pé descalço
Ajudando meus pais no roçado
Correndo atrás das galinhas quando a vida me permitia ser criança
A fábrica à minha frente torna-se um pesadelo distante
Eu repouso minha cabeça sobre o colo da minha mãe
Enfim, fechos os olhos e descanso
Como há muito tempo não descansava

O grande mistério

A verdade é que o mundo é muito
Muito pequeno para os nossos sonhos
A realidade é sórdida e mesquinha
O que fazemos uns aos outros é ultrajante
Mas existe um “mas”, existe um “a despeito disso tudo”
E é aí que reside o segredo do universo que cada um de nós carrega na alma
Em constante rota de colisão uns com os outros
Chispando em big bangs ou se extinguindo em buracos negros
O segredo é a tenacidade da capacidade de sonhar e amar embora quase tudo o que vemos
Sentimos e fazemos seja contrário a essa capacidade
Permanece sempre queimando a chama daquilo que faz de nós humanos
É preciso procurar com muito afinco para encontrar um ato bondoso
Uma história inspiradora, um acontecimento mágico
E a despeito disso, um único ato-história-mágico desses
É capaz de restituir a fé soterrada por décadas
Abaixo de camadas e mais camadas de frustrações e erros
Um amontoado recoberto por uma fina e inquebrantável película de medo e culpa
Uma vida inteira, e dá para contar nos dedos das mãos o que dela fora bom
E inacreditavelmente nós continuamos, impávidos
Para no final, ao arrostar a face pálida e gélida da morte
Termos uma frágil tábua à qual se apegar
E enfrentar a travessia eterna que se inicia depois
Eu só queria entender essa coisa ininteligível
O porquê de tantos sonhos pacíficos se extraviarem
Confusos, nessa tempestade de misérias
E, o que é ainda mais notável
O porquê de permanecermos fieis a eles
Como é possível que façamos tantas coisas belas
Quando tudo o que criamos é grotesco?